Angropofagia século 21

Antropofagicamente, assimilei um acontecimento recente e fiz um blog, um nikki (日記) - diário em japonês - pós-moderno de fatos, farsas, ficção, relatados através dos meus textos ficcionais. Nele, apresento textos antigos já publicados em alguma mídia, observações sobre o cotidiano, textos atuais e tudo o mais que surgir. bjos a todos que passarem por aqui.

Alterei minhas postagens iniciais porque a nova mídia ainda me faz questionar conceitos como título (de postagem ou do próprio texto?), gênero (o gênero se altera pela mudança de suporte?) e a descoberta da imagem como recurso narrativo.

Por favor, comentem o resultado, talvez provisório e os textos em si.

Aos poucos, a meta é que a linguagem deste blog amadureça, como uma eterna e instigante construção.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A HISTÓRIA JAPONESA E SEUS REFLEXOS EM DOIS FILMES DE AKIRA KUROSAWA.

Este foi um trabalho acadêmico para a professora Regina Darriba, e uma das regras era que fosse publicado em uma página da web. Então... publiquei-o aqui. Também é uma forma de conhecer outra forma de escritura que exerço, em um formato bem menor do que os das minhas monografias.

Like any cultural artifact removed either temporally or spatially from an originating context, the work of art becomes […] open to new interpretations as it moves through time and through different cultural surroundings. These interpretations infrequently become associatedwith the work, affecting subsequent interpretations, perhaps as much as the work itself. Marvin Carlson


Trono manchado de sangue (1957) e Ran (1960), de Akira Kurosawa (1910-1998), juntamente com O homem mau dorme bem (1960), são adaptações de William Shakespeare. Neste sentido, os dois primeiros filmes são, respectivamente, traduções culturais das tragédias Macbeth e Rei Lear para o Japão feudal, enquanto que o terceiro é um filme que retrata o momento japonês contemporâneo do pós-guerra. Assim, O homem mau dorme bem difere de Trono manchado de sangue e Ran quanto ao gênero fílmico,  já que o cinema japonês pode ser classificado em dois grandes gêneros: jidaigeki, que engloba os filmes de época japonês centrados na figura do samurai, e gendaimono, com filmes de temáticas inseridas na atualidade. Kurosawa criticava o jidaigeki: “sempre achei que o jidai japonês era historicamente desinformado. Além disso, esse gênero nunca usa técnicas cinematográficas modernas. Em Os sete samurais [1954] tentamos fazer algo a esse respeito, e Trono manchado de sangue seguiu a mesma linha.” (Apud RICHIE, 1984, p. 116).


  



Cartazes de Trono manchado de sangue, Ran e O homem mau dorme bem.


No momento em que o diretor elege o jidaigeki em suas adaptações de Macbeth e Rei Lear, o samurai e seus valores aparecem como elementos fundamentais no processo de tradução cultural. Estes personagens históricos “eram lendários guerreiros que no antigo Japão levavam vidas nobres e violentas regidas pelos ditames da honra, da integridade pessoal e da lealdade.” (Turnbull, 2006, p. 7) Para Stephen Turnbull, é necessário perceber que “por trás desses princípios encontra-se um desejo que sobressai aos ditames impostos pelo serviço a outrem. Trata-se da necessidade de ser reconhecido”. (2006, p. 7) Assim, é preciso determinar os limites entre os deveres para com o senhor e os interesses pessoais de poder e ascensão. Neste complexo equilíbrio, o código de valores de conduta do guerreiro era parte do mesmo modo de vida que admitia as guerras e as disputas pelo poder. Este código de conduta era chamado bushidō, expressão que, segundo Inazō Nitobe

significa, literalmente, Modos-Militares-do-Guerreiro – as maneiras que os nobres guerreiros deveriam observar tanto na sua vida diária quanto na sua vocação [lutar]; em suma, os ‘Preceitos do Guerreiro’, o noblesse oblige da classe guerreira. [...] Bushidō é, então, um código de princípios morais que os samurais[1] eram requisitados ou instruídos a observar. Não é um código escrito; na melhor das hipóteses consiste de poucas máximas transmitidas oralmente ou vindas da pena de algum notório guerreiro ou sábio. Mas frequentemente é um código incompleto e não-escrito, possuindo uma maior sanção de proeza verdadeira, e de uma lei escrita no tablete corpóreo do coração. Não foi moldado como criação de um único cérebro, mesmo que capaz, ou na vida de um único personagem, mesmo que notável. Foi um crescimento orgânico de décadas e séculos de cárcere militar. (p. 3-5)
  
Nitobe (p. 5) também afirma que como este código estava arraigado na consciência coletiva do feudalismo japonês e sua origem deve ser ligada a este período. E alerta que o bushidō compartilha uma natureza intrincada com o próprio feudalismo e afirma (p. 9-17) que o budismo foi uma das fontes deste código, juntamente com o xintoísmo e o confucionismo. O conceito de retidão é um dos preceitos do bushidō. Nitobe apresenta duas definições que procedem de dois samurais renomados, mas que não nomeados por ele:

a força de decidir sobre um certo modo de conduta de acordo com a razão, sem hesitar;– morrer quando é correto morrer e atacar quando é correto atacar’. (1904, p. 20-21)

o osso que dá firmeza e estatura. Assim como a cabeça não pode se sustentar em cima da espinha sem ossos, nem as mãos podem se mover ou os pés se firmar, sem retidão nem talento nem aprendizado podem transformar uma compleição humana em samurai. Com ela [a retidão] a falta de aptidão não significa nada.” (1904, p. 20-21)

 
Armadura samurai exposta em loja da Liberdade, SP.
Reprodução de armadura samurai  feita pelo designer Fernando Souza.

A falta de retidão é o erro trágico de Washizu e Hidetora, quando eles se deixaram enganar pelas aparências e não usaram a razão ao analisar os fatos. Não foram os crimes de Washizu que o condenaram, mas a falta de visão que o levou a cometê-los. Sua falta de equilíbrio no cerco do castelo fez com que esta falta de retidão ficasse evidente para os subordinados, fazendo com que eles o alvejassem com uma chuva de flechas na cena final. Já para Hidetora, os atos cometidos durante as guerras expansionistas não o fizeram descer do patamar de grande senhor feudal. Afinal, vários daimyōs históricos também cometeram ou foram suspeitos de terem cometido crimes contra seus pais, irmãos ou parentes. Mesmo assim, a sua capacidade como legisladores e estrategistas os manteve no poder e eles continuaram dignos de admiração para a coletividade. Foi sua perante os filhos e a sua intenção de se afastar do poder que o fez inútil àquele mundo e propenso a ser traído e humilhado.
Morte à traição de Washizu.

Loucura de Hidetora.

Ao ambientar estes filmes no Japão feudal, Kurosawa delimitou os enredos de ambas as peças à disputa de um único feudo. Questões como as disputas de poder, a lealdade, a traição iminente acabam ficando mais concentradas e, ao mesmo tempo, restritas. Ao transformar a figura do rei em um senhor feudal, a premissa existente nas tragédias shakespearianas de uma volta à ordem anterior ao conflito – segundo a pirâmide medieval dos seres – é rompida. Os filmes resultam na destruição dos feudos. O equilíbrio é restabelecido através da anexação do território dos feudos destruídos a novos feudos, que não são claramente definidos.


Feudo do Castelo da Teia de Aranha destruído (Trono manchado de sangue).


Trono manchado de sangue e Ran são ambientadas em um momento específico do longo feudalismo japonês, o Período Sengoku (1392-1568), que se caracterizou como uma época permeada por conflitos generalizados (guerra civil intra e entre feudos) que foram se intensificando ao longo do período.

A Guerra de Onin [travada entre 1467 e 1476] inaugurou um século e meio de conflitos a que os historiadores deram o nome de Sengoku Jidai, o Período dos Estados Guerreiros, termo extraído da história da China, muito embora as guerras japonesas se dessem entre clãs e famílias, e não entre Estados propriamente ditos. Seus líderes se auto-intitulavam daimyōs, o que significava literalmente ‘grandes nomes’, e daimyōs quinhentistas como Takeda Shingen[2], Uesugi Kenshin e Date Masamune granjeariam ‘grandes nomes’ que ocultariam tudo o que seus ancestrais heróicos haviam conseguido durante a Guerra Genpei. Esse foi também um tempo de grandes desenvolvimentos na guerra dos samurais. Somente os fortes sobreviviam e ser forte envolvia a mobilização de grandes exércitos munidos de boas armas. O daimyō bem sucedido tinha pronto acesso a grande número de soldados graças ao uso de ashigaru (infantes[3]), que eles treinavam no uso de arcos (outrora a arma tradicional dos samurais), lanças longas e as recém-introduzidas armas de fogo. (TURNBULL, 2006, p. 19)

Há marcas que identificam o período na ambientação dos dois filmes. Primeiramente, Kurosawa era muito minucioso na pesquisa histórica empreendida em seus filmes, o que pode ser verificado nos detalhes dos cenários e locações, no figurino e em outros aspectos visuais. Este foi também o motivo do atraso nas filmagens de Trono manchado de sangue: “Kurosawa se recusava a usar um cenário já pronto porque tinha sido construído com pregos, e as lentes de foco profundo que estava usando poderiam revelar as anacrônicas cabeças de prego” (RICHIE, 2000, p. 72). Os diálogos de alguns personagens também remetem a este período conturbado, em que nem os familiares eram confiáveis:

Manipulação de Asaji.

Asaji/Lady Macbeth: Acaso se esquecestes de que o atual senhor feudal matou o seu senhor anterior para conquistar a posição que ocupa agora?” (KUROSAWA, 1957, [filme])
Asaji/Lady Macbeth: Este é um mundo em que, para benefício próprio, um pai mata um filho e um filho mata um pai. (Id.)
Saburō/Cordélia: Me diga, que tipo de mundo o senhor supõe que é esse? Este é um mundo em que o pior que há nos homens e instintos cruéis são expostos, onde você não consegue viver se não deixar de lado sua humanidade e todos os sentimentos nobres! [...] Mas pai, nós também crias desta idade degradada de lutas; você não sabe o que nós podemos estar pensando. [“Só porque somos seus filhos, o senhor não pode sonhar com apoio e proteção para a sua velhice.”] Pra mim, o senhor não é nada além de um demente, um velho senil. (KUROSAWA, 1986, p. 16-17)

Robert Hapgood afirma que o período Sengoku pode ser identificado pela diegesis de Trono manchado de sangue, porque “os mosquetes estão ausentes e os códigos de lealdade feudal não foram totalmente descartados”.  (Apud: YOSHIMOTO, 2000, p. 253). Em Ran, percebe-se que os valores do código de conduta – bushidō – possuem um aspecto apenas teórico e parecem ter sido perdidos na intensidade dos conflitos, tendo sido abandonados, na prática, por muitos guerreiros. Isto é dito por Saburō e ilustra bem a posição de seus irmãos mais velhos. Desta forma, o filme se insere em um momento posterior do período. Outro ponto que liga Trono manchado de sangue e Ran ao período é a independência dos senhores feudais, que sugere que ainda não havia um poder centralizador a subjugar estes feudos.
Em Trono manchado de sangue, Asaji instiga o marido a assassinar seu senhor, Tsuzuki, da seguinte forma: “Ouça, o que este som [canto de um pássaro[4] no meio da noite] parece dizer? Para mim, ele diz: - Tome o poder.” (KUROSAWA, [Filme-vídeo], 1957) Esta afirmação faz referência não apenas ao feudo, mas também à unificação pelas armas – tenka – almejada por todo senhor feudal e samurai de valor. Essa referência é reforçada por ela após o suposto jantar em homenagem a Miki/Banquo. Ela repreende o descontrole do marido frente ao fantasma de seu antigo amigo: “É indigno de um senhor feudal que futuramente almeje a unificação do país - tenka wo mezasu se assustar com uma aparição”. (Id.) A menção à conquista do império, ou tenka situa a tragédia antes de 1568, quando Oda Nobunaga inicia o processo de unificação.

No período Edo, o Japão era conhecido primordialmente como tenka, ‘tudo abaixo do céu’. Isto simbolizava a união abaixo dos descendentes do divino sol. O shōgun baseou sua autoridade na pacificação do tenka através da transformação de todos os samurais em vassalos ou sub vassalos da sua família [seu clã]. Os nobres vassalos do shōgun regiam seus próprios domínios (ryōbun) formalmente agraciados como feudos pelo shōgun.   (ROBERTS, 2002, p. 5)

A noção de tenka, atribuída por Luke S. Roberts ao Período Edo – posterior ao Sengoku, quando a unificação do país já havia sido conquistada – é uma noção anterior do feudalismo, arraigada na alma de cada samurai de valor como a maior meta a ser alcançada. Cada um dos daimyōs guerreava com os feudos vizinhos para expandir o seu poderio, rumo à unificação do país. A expressão tenka wo toru – tomar o Japão, unificá-lo – era uma premissa na vida dos samurais e principalmente dos inúmeros daimyōs que guerreavam com os feudos vizinhos em pontos isolados do arquipélago japonês.

Os principais conflitos militares no Sengoku Jidai foram as lutas por poder entre os daimyōs mais fortes, de cujas fileiras emergiria ao fim um único vencedor. Oda Nobunaga (1534-82) foi o primeiro daimyō a tomar medidas para isso ao ocupar Kyōto e abolir o shogunato, em 1568. Ele morreu em 1582. O efetivo reunificador do Japão acabou sendo em dos samurais de Oda Nobunaga, que ascendeu pelos escalões desde sua posição inicial como ashigaru. Toyotomi Hideyoshi (1536-98) tornou-se um dos generais de maior confiança de Oda Nobunaga, e reagiu com um misto de lealdade e oportunismo ao receber a notícia de que Nobunaga havia sido assassinado. Numa série de manobras políticas e campanhas militares [...]Hideyoshi impôs sua autoridade. Alguns daimyōs se tornaram seus aliados após fracassarem em batalha contra ele. Tokugawa Ieyasu, que foi derrotado na batalha de Nagakute em 1584, é o melhor exemplo dessa atitude acomodatícia. (TURNBULL, 2006, p. 21)

Este apanhado da História do Período Sengoku – até a transição do regime para o shogunato feudal e controlador de Tokugawa Ieyasu – estabelece o momento histórico em que se inserem os enredos de Trono manchado de sangue e Ran. A noção de tenka na adaptação de Macbeth sugere que o país ainda estava dividido em feudos, esperando a iniciativa de um grande daimyō para unificá-lo. Ao mesmo tempo, a preocupação de Washizu com os valores feudais sugere que a ação tenha se dado ainda no início do período, antes que estes conceitos fossem subjugados pela violência das guerras internas intra e entre feudos.  A guerra intra-feudo pela tomada do poder no início do filme e a batalha final para restituir o comando do feudo a quem de direito, também são indícios de que não havia no Japão um poder maior do que o dos daimyōs. Já em Ran, a perda dos valores do Código de Conduta do Samurai – o bushidō – parece mais acentuada, indicando que o momento histórico é posterior ao de Trono manchado de sangue. As guerras entre feudos anteriores ao início da trama, que haviam ocorrido entre o protagonista Hidetora e seus vizinhos, mostram o ímpeto expansionista da personagem e também a liberdade dos senhores feudais em anexar outras terras, característica do momento anterior à unificação. Conclui-se que ambos os enredos estão localizados no Período Sengoku, sendo que Trono manchado de sangue se situa no início deste período; e Ran se localiza próximo ao fim do período, pouco antes da unificação do Japão.

AS ARMAS DE FOGO NO JAPÃO


                                                 
Duas fotos de reprodução de arma de fogo da época feita por Fernando Souza.

Um evento histórico abordado em Ran é a introdução das armas de fogo[5] no Japão. As primeiras armas de fogo conhecidas no Japão não eram européias, visto que “espingardas chinesas rudimentares já eram conhecidas desde 1510, mas a introdução de arcabuzes europeus em 1543 causou uma espécie de revolução militar” (TURNBULL, 2006, p. 19). Segundo William E. Deal

o Japão medieval, provavelmente, estava familiarizado com armamentos explosivos devido ao seu contato prolongado com a China, país em que a pólvora já vinha sendo usada há muitos séculos. Posteriormente, piratas (wako) e mercadores viajando para e do continente asiático devem ter observado ou manejado armas com trava de mecha[6] [mosquetes e arcabuzes]. Entretanto, mesmo que as armas de fogo (teppo) já fossem conhecidas no Japão, seu uso não foi disseminado em batalhas japonesas até o momento em que armas européias foram formalmente introduzidas a Tanegashima Tokitaka, daimyō de uma ilha na costa sul de Kyushu, em 1543. (2007, p. 163)

Esse encontro só aconteceu por força do acaso. As armas de fogo

alcançaram o Japão acidentalmente em 1543 quando um tufão impeliu um navio com uma tripulação mista do sudeste asiático para uma pequena ilha chamada Tanegashima. Entre as mercadorias trocadas por prata japonesa estava a matchlock, um tipo de mosquete. O governante da ilha ordenou a seus subordinados que estudassem o seu funcionamento e a sua manufatura e distribuíssem amostras para os senhores da guerra mais poderosos do país. (Ebrey, Walthall and Palais, p. 257)

Segundo Sanjay Subrahmanyam, a introdução das armas de fogo no Japão é uma consequência da “revolução militar” na Europa (1560 a 1660). O comércio de armas logo floresceu: “os comerciantes europeus foram seus fornecedores iniciais, mas os japoneses logo puseram mãos ao fabrico e produção” (TURNBULL, 2006, p. 19). E embora a popularidade das armas de fogo no Japão continuasse a crescer, alguns samurais pensavam que esta nova tecnologia eliminava a honra do campo de batalha, tornando a morte dos guerreiros algo injusto e banal.  Geoffrey Parker afirma que “na China, e mais proeminentemente no Japão, as armas de fogo foram rapidamente incorporadas e causaram uma verdadeira transformação na arte da guerra” (Apud: Subrahmanyam, p 131, 2006). Entretanto,

o devido uso dessas armas ainda levou algum tempo para ser percebido, até que o daimyō Oda Nobunaga passou a se valer de saraivadas maciças por esquadras treinadas de infantaria. Sua vitória na batalha de Nagashino em 1575 fez um uso intensivo dessas novas técnicas. (TURNBULL, 2006, p. 19-21)

A batalha de Nagashino é um exemplo da desigualdade que passou a vigorar entre os feudos próximos, porque nem todos os senhores feudais tinham acesso às armas de fogo. Deste modo, os conflitos eram decididos a favor do lado que as possuíssem; fazendo com que as estratégias de guerra tradicionais entrassem em desuso. Houve uma crescente popularidade das armas de fogo, segundo Deal: “logo este armamento provou ser popular entre os militares japoneses, particularmente quando as escaramuças regionais evoluíram para desafios à autoridade do shōgun” (2007. p. 164).

Embora tenha ocorrido uma subsequente reversão no caso japonês, com os Shōguns Tokugawa impondo uma “desmilitarização” no século XVII, houve um efeito substancial, em uma fase dramática (o final do século XVI) de mudança da tecnologia de guerra, nos processos de formação do estado. É isto que aqui foi chamado (seguindo Parker) de “efeito Kagemusha”, fazendo eco ao tema do filme de Akira Kurosawa, onde as armas de fogo nas mãos das forças de Oda Nobunaga são vistas, na batalha de Nagashino (1575), como fator de alteração decisivo do equilíbrio contra um outro conjunto de daimyō, que ainda esposavam a velha forma de guerrear envolvendo cavalaria pesada. Isto pode ser entendido como estando integralmente relacionado à bem sucedida centralização de poder no Japão do final do século XVI e começo do XVII. (Apud: Subrahmanyam, p 131, 2006)

A batalha descrita por Parker como parte de Kagemusha (1980) remete às batalha ocorridas em Ran, nas quais são utilizadas muitas armas de fogo. Isso implica em uma intratextualidade deste filme com aquele, indicando também uma proximidade temporal. O uso das armas de fogo, que revolucionou a arte da guerra no Japão, aparece de forma gradativa no filme, sendo utilizadas pelos exércitos dos filhos do protagonista, contrastando e rivalizando com as armas tradicionais do samurai (espadas longa e curta, arco e flecha e lança), principalmente na figura de Hidetora, que se utiliza o arco e flecha e a espada e não empunha armas de fogo. A traição de Tarō e Jirō é empreendida com o uso de armas de fogo, e embora Saburō também se utilize das armas de fogo em sua tentativa de resgatar o pai, o efeito contrastivo persiste. Por um lado, existe a traição, em contraste com os valores tradicionais, representados pelo protagonista; por outro, há o choque de gerações, representado pelas armas de fogo (utilizadas pelos filhos) e as armas do samurai (relacionadas com Hidetora).
O último ato heróico como senhor feudal – a flechada em um javali – e a flechada em um guerreiro de Tarō que tentara matar o bobo Kyōami – no mesmo dia em que legara o controle do feudo – demonstram a diferença de posição social entre estes dois momentos.


 
Flechada que salva Kyōami.


A espada serve para acentuar a queda trágica do herói, porque serve para que ele assine a sangue a confirmação de seu primogênito como senhor feudal e, também, impede-o de cometer o suicídio ritual[7], devido à lâmina quebrada, quando Hidetora perde a batalha no Castelo III. Assim como na batalha apresentada no filme imediatamente anterior, o já mencionado Kagemusha, as armas de fogo utilizadas em Ran  apenas por um dos lados combatentes – o dos filhos desleais do protagonista, Tarō e Jirō – durante a batalha no Castelo III tornam desigual e previsível os rumos desta contenda. Percebe-se em Kurosawa, tanto na batalha histórica quanto na fictícia, a existência de uma referência metafórica ao contraste bélico entre Japão e Estados Unidos que fazia com que o resultado na II Guerra no Pacífico/Oriente tivesse o efeito de uma tragédia anunciada.


Batalha final entre o senhor feudal usurpador Jirō e Saburō.


 
Nas referências a guerras e conflitos do passado distante da História japonesa encontradas em Trono manchado de sangue e Ran, devem ser detectados os ecos da II Guerra Mundial e ao seu pior efeito para o povo japonês, ou seja, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki, e os efeitos nocivos da radiação, continuavam presentes e atuantes no inconsciente coletivo do país como um todo no momento em que ambos os filmes foram realizados e persistem até os dias atuais. Esta idéia está presente na firmação a seguir, de Richie: “Em Macbeth, Kurosawa viu uma questão contemporânea – um paralelo entre Escócia e Japão medievais que lança uma luz sobre a sociedade contemporânea [a sociedade do pós-guerra]; e mais, um esquema válido tanto no contexto histórico, como contemporâneo.” (1984, p. 116). Tal afirmação é verdadeira também para o filme Ran, que apresenta ‘a estetização da violência’ na guerra pelo poder no feudo Ichimonji como uma forma metafórica de abordar a II Guerra Mundial e suas consequências, que aparecem em outros filmes do diretor, tais como Anatomia do medo e Rapsódia de Agosto (1991).
Por fim, as armas de fogo incluídas em Ran criam a possibilidade de um paradoxo temporal com a afirmação anterior sobre o Período Sengoku e, desta forma, também com as afirmações feitas pelo caçula de Hidetora, Saburō, que ilustram perfeitamente este período. De qualquer forma, tanto a intensificação dos conflitos intra e entre feudos ilustrada por Saburō, quanto a utilização das armas de fogo no filme, inscrevem-no no final do século XVI.

Notas:
[1] Knights no original. Foi trocado para ‘samurais’ por uma questão de clareza do texto, e para não haver confusão com os cavaleiros da Europa Medieval.[2] Takeda Shingen – daimyō retratado no filme Kagemusha, de Akira Kurosawa que, após ser ferido, escolhe um sósia para ficar em seu lugar e governar por três anos. Neste tempo, sua morte deve permanecer em segredo. Oda Nobunaga e Tokugawa Ieyasu também são personagens do filme.[3] Infante – a partir de 1590, o samurai de mais baixo escalão.[4] Na vez anterior em que este pássaro cantou, um subordinado da Mansão do Norte chama-o de pássaro de mal agouro (bird of ill omen). Na legenda em português, o pássaro é chamado de corvo.[5] Estas armas eram o canhão, o arcabuz e o mosquete (e, posteriormente, a espingarda).[6] Matchlock, como na referência abaixo. Preferiu-se traduzir essa palavra na primeira referência em que aparece, introduzindo também o tipo de armas de fogo que havia na época.[7] Suicídio ritual, seppuku - obrigação do guerreiro vencido ou desonrado, feito através da técnica de desventramento, o harakiri, que consiste no ato de perfurar o ventre e atravessá-lo horizontalmente da direita para a esquerda, culminando o movimento com uma rotação da lâmina pelas entranhas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DEAL, William E. Handbook to life in medieval and early modern Japan. Oxford University Press, 2007.
EBREY, Patricia; WALTHALL, Anne; and PALAIS, James (ed.) Pre-modern East Asia: To 1800: a Cultural, Social, and Political History. Boston and New York: Houghton Mifflin Company, 2006.
KUROSAWA, Akira; OGUNI, Hideo; IDE, Masato. Ran the original screenplay andstoryboards of the Academy Award-winning film. (Transl.) Tadashi Shishido. Boston: Shambhala, 1986.
NITOBE, Inazō. Bushido the Soul of Japan. Author's Edition, 1904.
Ran. [Filme-vídeo]. Direção de Akira Kurosawa. Tóquio: Herald Ace/Nippon Herald Filme/Greenwich Film Production, 1985. 01 DVD, 162 minutos, son., color. Legendado. Port.
RICHIE, Donald. Os Filmes de Akira Kurosawa. São Paulo: Brasiliense, 1984.
______. Retratos Japoneses: crônicas da vida pública e privada. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
______. The films of Akira Kurosawa. 3rd ed., expanded and updated with a new epilogue. Berkekey, Calif.: University of California, 1998.
ROBERTS, Luke S. Mercantilism in a Japanese Domain: The Merchant Origins of Economic Nationalism in 18th-Century Tosa. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
SUBRAHMANYAM, Sanjay. “O efeito Kagemusha. As armas de fogo Portuguesas e o Estado no Sul da Índia no início da época moderna”. In: História: Questões & Debates, Curitiba, n. 45, p. 129-151, 2006. Editora UFPR. Trad. Ana Maria Rufino Gillies, disponível em:
http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFile/7947/5591 Acesso em 08/06/2010
Trono manchado de sangue (Kumonosu-jō). [Filme-vídeo]. Direção de Akira Kurosawa. Tóquio: Tōho produtora, 1957. 01 DVD, 110 minutos, son., preto e branco. Legendado. Port.
TURNBULL, Stephen. Samurai – o lendário mundo dos guerreiros. Trad. Roger Maioli dos Santos. São Paulo: M. Books, 2006.
YOSHIMOTO, Mitsuhiro. Kurosawa – film studies and Japanese cinema. Durham: Duke University, 2000.


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