Angropofagia século 21

Antropofagicamente, assimilei um acontecimento recente e fiz um blog, um nikki (日記) - diário em japonês - pós-moderno de fatos, farsas, ficção, relatados através dos meus textos ficcionais. Nele, apresento textos antigos já publicados em alguma mídia, observações sobre o cotidiano, textos atuais e tudo o mais que surgir. bjos a todos que passarem por aqui.

Alterei minhas postagens iniciais porque a nova mídia ainda me faz questionar conceitos como título (de postagem ou do próprio texto?), gênero (o gênero se altera pela mudança de suporte?) e a descoberta da imagem como recurso narrativo.

Por favor, comentem o resultado, talvez provisório e os textos em si.

Aos poucos, a meta é que a linguagem deste blog amadureça, como uma eterna e instigante construção.

sábado, 1 de maio de 2010

Um conto sobre um tema desagradavelmente presente, o preconceito.

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GOTA D’ÁGUA

ELE... sempre ELE.
Desta vez, a tal da gota d’água, mãos tingidas de vermelho, todo o resto destituído de cor.
E eu, sempre a excluída, invisível. O outro! Aquele a quem as ofensas podem ser dirigidas e ainda assim permanecer despercebidas atrás de sorrisos polidos.
Sorrisos cuja cor...

Primeira vez.
ELE: menino sem rosto berrando – a voz que enche toda a rua de muros amarelos – cantilenas despejadas por entre os dentes fileiras de tijolos amarelos – “Japonês tem oito filhos, o primeiro... E se segue a enumeração de deformidades, o teatro dos horrores! A boca gigante escancarada voa cada vez mais próxima ao meu encontro; lábios amarelos. O céu vermelho, o asfalto vermelho, as casas vermelhas.

Em um tempo indefinido, talvez aquele das lendas. ELE que era ela, disfarce que não convenceu. A pergunta insólita que faz o tempo se interromper:
- Eu sempre quis saber se... fico meio sem jeito, mas sempre disseram desde que eu era pequena que, é, as japonesas, sabe como é... a sua vagina é de atravessado?
Eu bem que desconfiei que era ELE, o cabelo amarelo não deixava dúvidas.
Nesse tempo não havia os vídeos educativos com a sexualidade humana. Mesmo que houvesse, japoneses não são exatamente humanos, já que... o Oriente... fica em um planeta bem na curva do sistema solar, logo ali depois de Marte, o famoso planeta vermelho.
Tentáculos vermelhos projetam-se de seu rosto sorridente e dilaceram meu braço esquerdo.

Ontem. Novamente ELE. Professor universitário da área de lingüística, trinta e poucos anos (como consegue arranjar tantos disfarces?):
- Não sei como existem línguas que são SOB, - sujeito-objeto-verbo - será que as pessoas ficam adivinhando o que vem depois o tempo todo?...
- Não deve ter nenhuma língua que deixe de pré-nasalizar o a.
A camisa amarela denuncia o complô contra a minha língua, o Japonês. O discurso vermelho enche de névoa a sala, o andar, o prédio. Toda a cidade se enche do preconceito com que ELE contamina a mente das pessoas.
Olhos vermelhos por toda a parte, sorrisos amarelos.

Anos, muito tempo atrás (séculos?)
ELE, que virou um falso Hare Krishna, sem a vestimenta característica mas munido de incensos. Rapaz franzino de dezessete anos. O portão baixo de ferro entre nós e ELE, na casa de uma amiga.
- Você não namora brasileiros, né?
silêncio, não sei o que dizer.
- Não deve, viu, ’cê pode morrer!
- ...
- O membro dos brancos é tão maior que o dos japoneses, que...
- !!!
- quando entra numa menina japonesa ele rompe tudo dentro dela – gritos palavras vermelho-sangue rompendo o rosto amarelo – até que ela explode.
Os incensos amarelos, o corpo do rapaz amarelo incandescente! Paredes amarelas, rua de pedras amarelas, a menina amarela imóvel a meu lado (amiga?). Tudo à minha volta um turbilhão amarelo. Folhas amarelas se desprendendo das árvores. E as palavras vermelhas crescendo e voando pelo céu também amarelo, balões de gás espalhados pelo mundo.

A segunda vez, um bêbado que era ELE. Gritos vermelhos na manhã de inverno:
- Macaco! Ô Japão, é com você mesmo. Volta pra tua terra!
Xingamentos dirigidos ao meu pai, eu criança a seu lado, tremendo de medo.
A roupa do homem tingida com uma gosma amarela gelatinosa. Pingos de amarelo cuspidos simultaneamente com os gritos colorem a calçada vermelha.

Universidade. O Japonês em foco de novo, sob a possibilidade de uma nova habilitação do curso de Letras. Outro professor, o jaleco amarelo me indica que é ELE:
- Viu só, se vocês não tiverem mais o que fazer, podem começar o Japonês! – a risada amarela ecoa pelo prédio.
Farpas vermelhas por entre o tecido do jaleco voam em minha direção e se fincam na parede amarela.

E hoje mais uma vez. O silêncio é outra forma de conivência...
ELE, travestido de palestrante, fala sobre a II Guerra, enumera os armamentos e inovações tecnológicas relevantes. Fala da indústria de mortes em massa, tantos detalhes. Restritos à Europa.
E infalivelmente esquece... o outro é sempre o invisível, o excluído.
Os óculos de aros amarelos denunciam que o esquecimento é proposital. O bigode se torna amarelo ouro. A pele, os cabelos, as unhas que se alongam em garras... toda a sua figura tinge-se de amarelo. A escrivaninha contamina-se em um degradée amarelo.
Meus olhos se turvam de vermelho. Olho para meus dedos da mão direita transformados em punhais também vermelhos. Lâminas que se fincam no corpo amarelo d’ELE, substância macia, pudim instantâneo de baunilha colorizado artificialmente.

Saio correndo da sala, meu corpo (exceto as mãos com dedos-punhais inteiramente vermelhos) mais amarelo que gema de ovo caipira. Os gritos reverberando um desespero vermelho que inunda a tarde.

Estirado na calçada de petit pavée o corpo sem vida de um bêbado que há pouco gritara um impropério.

3 comentários:

  1. Excelente texto. ELE realmente está por aí, à espreita em cada esquina, muitas vezes mais próximo do que podemos imaginar.

    Gostei do blog. Vou sempre dar uma passadinha por aqui, mesmo que para uma leitura rápida (embora não o ideal). Abraços!

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  2. Su, belo texto! Vc é muito talentosa.
    Grande escritora. Tenho muito orgulho de vc, petit!!!! Bjos saudosos

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